A praça do jogo dos poderes
- Ohanna Patiele Santos
- 16 de dez. de 2021
- 11 min de leitura
Atualizado: 3 de nov. de 2022
Projetada por Lúcio Costa em triângulo – de acordo com o ideal iluminista em que a República possui três poderes harmônicos, independentes e equilibrados – a Praça dos Três Poderes é cenário de um jogo, onde a beleza das obras-primas de Oscar Niemeyer contrasta com interesses escusos e práticas nada republicanas

“Como a palma da mão que se abrisse além do braço estendido da esplanada onde se alinham os ministérios, porque assim sobrelevados e tratados com dignidade e apuro arquitetônicos em contraste com a natureza agreste circunvizinha, eles se oferecem simbolicamente ao povo; votai que o poder é vosso”. Assim, Lúcio Costa imaginou a Praça dos Três Poderes, sede dos poderes da República Federativa do Brasil – Executivo, Legislativo e Judiciário.
Cheia de simbolismos, a praça é impossível de ser ignorada. Quem visita Brasília se impressiona com a beleza e a imponência das obras de Oscar Niemeyer. O céu de Brasília é riscado pelo Congresso Nacional, que emerge no centro da Esplanada dos Ministérios com seus 28 andares e as duas cúpulas invertidas. A sede do Poder Legislativo é um dos três vértices do triângulo equilátero desenhado por Lúcio Costa para representar o ideal de uma república igualitária e democrática.
No século 18, momento de declínio do absolutismo europeu, surge a Teoria da Separação dos Poderes, imortalizada na obra “O espírito das leis”, escrita em 1748 pelo filósofo francês Charles Montesquieu.
Consagrada nas ciências políticas como mecanismo de freios e contrapesos, a teoria foi pensada para que os três poderes da República fossem harmônicos e independentes, sem que um deles pudesse impor a sua vontade sobre os demais e, assim, evitar que os regimes autoritários ou ditatoriais germinassem na República.
Lúcio Costa, quando imaginou a nova capital do país, inspirado pelo pensamento iluminista, desenhou o triângulo na base da grande esplanada destinada às atividades políticas, cerimoniais e culturais, representando fisicamente que Legislativo, Executivo e Judiciário são a sustentação da República brasileira.
“De todos os projetos apresentados, o de Lúcio Costa era o projeto a ser escolhido por causa da força simbólica que Brasília passou a assumir como representante da nacionalidade brasileira”, afirma o professor Frederico de Holanda, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.

Nos outros dois vértices, obras-primas de Niemeyer flutuam. De um lado, a sede do Poder Executivo, o Palácio do Planalto, e a sede do poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF). “A contribuição de Niemeyer é muito interessante porque ele minimiza dos atributos de formalidade. Historicamente, os palácios estão em um nível superior, acessíveis por uma escadaria. Oscar projeta o Supremo e o Palácio do Planalto ligeiramente elevados do chão, para fazer a separação entre dentro e fora. Isso é um toque de formalidade, mas é sutil e o acesso é por rampa”, explica Holanda.
O professor Frederico Flósculo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB), complementa. “Lúcio Costa dá simplicidade aos palácios e os desenha pequenos e em formato de paralelepípedos. Oscar Niemeyer, no entanto, os faz à sua maneira. Fez os palácios como caixinhas, soltas no ar. Com uma varanda brasileira, não são caixinhas fechadas, são caixinhas que respiram. Lá dentro tem outra caixinha de vidro, que é a caixinha da transparência”.

Flósculo destaca a sinergia entre Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, que trabalharam juntos quando o primeiro era recém-formado. A amizade quase foi impeditivo para que Lúcio Costa participasse do concurso. Por Niemeyer ser presidente do júri, Costa recusou os convites que recebeu. Mudou de ideia e foi o último a protocolar a proposta, enviada através da filha, Maria Elisa Costa, na noite do dia 11 de março de 1957.
A despeito das reclamações e boatos de favorecimentos, é unânime o brilhantismo do projeto apresentado por Lúcio Costa. “Ele apresenta um verdadeiro documento de civilização, de uma beleza literária e clareza de ideias impressionantes”, afirma Frederico Flósculo.
Niemeyer interpreta os traços muito preliminares desenhados por Lúcio Costa e faz modificações importantes. No desenho original, Costa prevê apenas uma torre e uma cúpula para o Congresso Nacional. Como o Brasil tem um Poder Legislativo em sistema bicameral – composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal – Oscar Niemeyer duplica as torres e as cúpulas, invertendo uma delas.
Frederico Holanda conta ainda que Niemeyer teve que alargar a Esplanada dos Ministérios significativamente para caber a sua interpretação do prédio do Congresso Nacional. “Lúcio tinha definido o prédio na dimensão maior Leste-Oeste. Oscar girou o Congresso Nacional em 90º, com a fachada maior Norte-Sul, que define o espaço da praça melhor que a proposta inicial”.
Outras alterações realizadas por Niemeyer são explicadas pelo arquiteto Francisco Lauande, que estudou a Praça dos Três Poderes na sua dissertação de mestrado na UnB. No projeto inicial, o trânsito de veículos seria mais integrado à praça, como em algumas praças europeias, apenas com um desnível demarcando o espaço dedicado aos carros. Oscar Niemeyer preferiu o desenho do Eixo Monumental passando entre o Congresso e o grande espaço branco da praça.
A posição do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal foi invertida por questões de segurança. “Ali (Eixo Monumental) é uma artéria da cidade, facilita o deslocamento em caso de um sinistro, de uma emergência, de uma necessidade de retirar o presidente”, justifica.
Entre o ideal e a realidade
O ideal de equilíbrio e harmonia, entretanto, não pôde ser alcançado apenas pela força do simbolismo impresso na praça. O sistema de freios e contrapesos prevê funções específicas para cada um dos poderes da República e formas de fiscalização entre eles, como explica o vice-diretor do Instituto de Ciências Políticas da UnB, Aninho Irachande.

O Poder Executivo é o poder administrativo, executor da vontade geral da população, que deve ser expressa por um outro poder, o Legislativo. Para as duas casas do Congresso Nacional são eleitos representantes do povo – deputados – e das unidades da federação – senadores – que transformam a vontade popular em normas, que devem ser obedecidas por todos, incluindo eles mesmos.
As normas aprovadas pelo Congresso Nacional devem ser validadas pelo chefe do Poder Executivo e as ações deste são fiscalizadas pelo Legislativo.
Como não é adequado que o controle dessas normas fosse feito por aquele que as propôs, o Poder Judiciário é responsável pelo cumprimento da Constituição, pela aplicação das normas e pela garantia que a proposta do legislador não impõe abusos sobre outros segmentos da nação.
“É um sistema para evitar que um dos três poderes possa exacerbar a sua função a ponto de suplantar os outros dois. Por isso, a melhor representação disso é uma distância razoavelmente equilibrada entre os poderes ao mesmo tempo uma vigilância razoavelmente equilibrada”, afirma Irachande.
A política brasileira tem algumas particularidades que abalam o equilíbrio entre os poderes. Uma delas são as coligações, que podem ser formadas durante o processo eleitoral ou em votações importantes no Congresso Nacional. Aninho explica que nenhum partido político conseguiu chegar ao poder sem se aliar a outros, o que acaba gerando uma interferência mútua entre os poderes Legislativo e Executivo.
O fruto dessas coligações são indicações para que membros do Legislativo chefiem ministérios, autarquias e fundações do Poder Executivo.

O cientista político David Fleischer, professor emérito da UnB, compara o Brasil com os Estados Unidos, nação que também adota o sistema de freios e contrapesos. Explica que no modelo norte-americano o presidente precisa de aval do Senado para a nomeação de ministros de Estado e para alguns cargos do segundo escalão. Outra diferença é que para assumir um cargo no Executivo, um parlamentar americano deve renunciar ao cargo para o qual foi eleito no Legislativo.
"O presidente brasileiro tem poder para nomear 25 mil cargos, sem qualquer confirmação do Senado. Nos Estados Unidos, devem ser 2 ou 3 mil cargos. São fichas que o presidente pode jogar para tentar angariar apoio dos partidos", destaca.
Outras fichas que o presidente brasileiro têm para jogar são as emendas parlamentares. Nos Estados Unidos, o orçamento aprovado pelo Congresso não pode ser alterado pelo presidente. "No Brasil, o presidente mexe a vontade e pode liberar a emenda para gastar se o deputado for bonzinho. Se não for bonzinho, não libera. É um poder sobre o Congresso", diz David.
Outra interferência entre os poderes Legislativo e Executivo são as medidas provisórias, um resquício do período de ditadura militar. Pensadas como medidas extraordinárias, para casos que exigissem certa urgência, são utilizadas com frequência pelo Poder Executivo porque a vontade do presidente passa a ter força de lei a partir do momento em que são assinadas.
“A medida provisória é um quinhão adicional ao Executivo de um poder de legislar. Essa medida poderia não ter esse efeito se o Congresso Nacional tivesse uma pauta própria e independência suficiente, e pudesse apreciar a proposta em tempo hábil para rejeitá-la ou transformá-la em lei”, diz Irachande. Como costumam ser apreciadas muito tardiamente, o Congresso se pronuncia sobre uma medida que já está em vigor.
Traços de Lúcio Costa revelam a forma triangular da Praça e a intenção inicial de fazer o Congresso Nacional com apenas uma torre e uma cúpula
Teia de barganha
O menor prédio da Praça dos Três Poderes não escapa da interferência imposta pelos outros dois poderes. O Supremo Tribunal Federal é composto por ministros indicados pela Presidência da República, aprovados pelo Senado Federal, o que impõe ao Judiciário grande influência política.
“Não há nada que impeça que os integrantes do STF sejam escolhidos pelo mérito do concurso público. Imagino que não ter uma ligação direta com os demais poderes pode dar uma independência maior para julgar de acordo com as normas”, afirma o professor Aninho.
David Fleischer discorda. "Isso iria ferir o equilíbrio entre os três poderes, tirando do Executivo a prerrogativa de indicar e do Senado de confirmar a indicação".

A demora para a aprovação de leis pelo Legislativo também abre brechas para que o Judiciário se pronuncie em questões que deveriam ser normatizadas pelos representantes da vontade popular.
"Temos no país a judicialização da política, quando o STF chega a conclusão que o Congresso Nacional não quer ou não tem condições de aprovar algo importante. Então, o Supremo decide algumas questões que afetam o país", explica Fleischer.
Em 2015, por exemplo, o Supremo decidiu que doações de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais é inconstitucional, algo que afeta diretamente o processo eleitoral. O STF também decidiu pela constitucionalidade das pesquisas com células-tronco e atualmente debate sobre a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação, temas controversos para o Congresso Nacional.
"A nossa Suprema Corte é bem politizada e, de certa maneira, moderna. Um exemplo são as transmissões ao vivo das sessões através da TV Justiça. O Supremo americano é muito fechado, as decisões são à portas fechadas", afirma David Fleischer.
Em resumo, o Poder Executivo legisla através das medidas provisórias, o Poder Legislativo chefia órgãos da administração federal, e os dois, por sua vez, decidem quem compõe o Poder Judiciário.
Aninho Irachande afirma que se trata de uma verdadeira queda de braço, mas com interesses espúrios, onde a discussão não é sobre o que é benéfico para o país e sim sobre cargos, salários e privilégios.
“Uma das formas que o Executivo se utiliza para pressionar o Parlamento é a distribuição de cargos, independente da qualificação dos governantes. Uma das formas que o Legislativo utiliza para pressionar o Judiciário é o controle de orçamento, de aumento de salários. O Judiciário pressiona o Legislativo e o Executivo com o julgamento de conveniência, apressando ou com a morosidade de um processo. Uma das formas que o Legislativo e o Executivo interferem no Judiciário é com a indicação dos integrantes. Então, veja que é uma teia de barganha”, assevera.
Francisco Lauande arremata. “Costumo dizer que a arquitetura do Niemeyer e o pensamento do Lúcio Costa estão muito a frente do tempo, de um país que ainda não aconteceu. Havia naquela geração muito mais ética e mais respeito, era uma geração mais comprometida com o futuro do país, idealista, que achava que Brasília seria um marco, um divisor de águas entre o país atrasado e o país desenvolvido”.
A praça do povo
A praça é o terceiro ponto turístico mais visitado da cidade, ficando atrás apenas da Catedral e da Torre de TV. Em 2016, mais de 153 mil pessoas assinaram os livros de visitantes dos monumentos da praça. O prédio mais visitado é o Congresso Nacional, que recebeu mais de 118 mil visitantes em 2016, segundo dados do Observatório do Turismo do Governo do Distrito Federal.
“Eu queria que a Praça dos Três Poderes fosse um (palácio de) Versalhes, não um Versalhes do rei, mas um Versalhes do povo, tratado com muito apuro”, afirmou Lúcio Costa ao projetar a Praça dos Três Poderes.

Entretanto, Frederico Holanda afirma que é necessário tomar cuidado com os discursos. O isolamento da área dedicada às atividades político-administrativa é próprio das sociedades mais desiguais. A Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes não integram a cidade, são um “penduricalho”, uma península morfológica. Opinião reiterada por Frederico Flósculo, que considera o plano piloto um “broche” na cidade, que se estende para os bairros e para as cidades-satélites.
“Nas passeatas de 2013, o grito era ‘Vem Pra Rua’. Quando você tem a mesma passeata na Esplanada dos Ministérios, qual é o sentido do grito? Você está gritando para quem? Começa que as empenas são cegas. Segundo, você só tem funcionários, então você não tem um público. Você pode exercer democracia, mas você tem restrições. Você tem reverberações que são diferentes qualitativamente de uma passeata que se dá na Avenida Rio Branco ou na Avenida Paulista em São Paulo”, explica Holanda.
O mobiliário minimalista, a falta de iluminação durante a noite e as cercas instaladas na praça também são criticadas pelos arquitetos. Holanda relembra que o prédio do Congresso Nacional foi projetado para ser acessado de inúmeras formas, pela entrada inferior, conhecida como chapelaria, pela rampa, pelo teto que se conecta ao Eixo Monumental pelas pontas, mas grande parte delas é restrita ao público.
Flósculo defende estudos para a instalação de equipamentos na área central de Brasília, como auditórios para reuniões públicas e colegiadas, centros culturais.
“É preciso ter espaços para que a República se realize. Ali é a representação e a realização da República”.
O Centro Cultural Três Poderes, vinculado a Subsecretaria do Patrimônio Cultural, da Secretaria de Cultura do Governo de Brasília, trabalha em iniciativas para trazer as pessoas para a praça. O projeto Visitando a Praça, Conhecendo Brasília e o projeto Turismo Cívico são voltados para a rede pública de ensino. A professora Keyla Guerreiro conta que, em 2016, cerca de 17 mil estudantes visitaram a praça.
O projeto Poderes com Arte promove eventos culturais na praça. Entre maio e setembro, em parceria com o Sesc Cineclub, o Centro Cultural realiza sessões de cinema ao ar livre, todas as sextas-feiras a partir das 19h30. A entrada é gratuita.
A praça da cultura
Na praça branca, sem árvores, a história de Brasília também é guardada. No centro, de frente para o Congresso Nacional, o Museu da Cidade (FOTO 1), o mais antigo de Brasília, guarda a história da transferência da capital, desde os tempos do império.
No subsolo, o Espaço Lúcio Costa (FOTO 2) abriga uma maquete gigante e reproduções dos desenhos originais do projeto urbanístico tombado como patrimônio da humanidade.
A Casa de Chá (FOTO 3) já foi um ponto de encontro da cidade e atualmente abriga um Centro de Atendimento ao Turista.
O Pombal (FOTO 4) foi feito por Oscar Niemeyer a pedido da esposa do presidente Jânio Quadros, Eloá, que acreditava que uma praça deveria ter pombos.
O Mastro da Bandeira (FOTO 5), construído durante a ditadura militar, com cem metros de altura, sustenta uma bandeira de 286 m².
O Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves (FOTO 6) homenageia os heróis da pátria em seu livro de aço. Atualmente, 31 heróis estão inscritos no livro. A construção do monumento é criticada por fechar a praça, que deveria ter visão aberta para o cerrado no projeto inicial de Lúcio Costa.
A Pira da Pátria (FOTO 7) compõe o conjunto do Panteão, e a sua chama deveria arder incessantemente, mas devido a um vazamento de gás está apagada desde fevereiro de 2017. De acordo com a diretora do Centro Cultural Três poderes, Jussara Menezes, a previsão é que a chama seja reacendida no segundo semestre.
Ainda se somam ao conjunto obras de arte como a escultura A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, em frente ao STF (FOTO 8); a escultura Os Guerreiros ou Os Candangos, de Bruno Giorgi, que homenageia os construtores da cidade (FOTO 9); os bustos de Juscelino Kubitscheck (FOTO 10), Israel Pinheiros (FOTO 11) e de Tiradentes (FOTO 12); e o Marco Brasília (FOTO 13), obra de Oscar Niemeyer em comemoração ao tombamento do plano piloto como Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade pela Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
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